Decorridos vários meses da crise sanitária e económica global causada pela covid-19…

Notas sobre a absoluta crueldade e a obscena irracionalidade do capitalismo-imperialismo

Por Raymond Lotta

Permalinks: https://revcom.us/a/657/four-months-into-global-covid-economic-crisis-en.html (inglês) e https://revcom.us/a/657/a-cuatro-meses-del-inicio-de-la-crisis-mundial-de-economia-por-la-covid-es.html (espanhol).

 [A]inda que haja certamente por parte das pessoas em todo o mundo um desejo legítimo e positivo a que se ultrapasse o flagelo deste vírus, tendo em conta qual é a verdadeira situação das massas da humanidade sob a dominação “normal” deste sistema, ninguém deveria desejar um regresso à “normalidade” ditada pelo sistema capitalista-imperialista

— Bob Avakian, “A mortal ilusão da ‘normalidade’ e a via revolucionária para seguir em frente

Estas são algumas reflexões iniciais sobre o impacto da pandemia da covid-19 na economia mundial imperialista e nas pessoas em todo o mundo. Estas reflexões são disponibilizadas para contribuir para a compreensão desta situação sem precedentes e do potencial para convulsões radicais. Mais reflexões irão sendo disponibilizadas.

1ª Parte

1) Um ponto fundamental de compreensão e orientação. A covid-19 é um fenómeno biológico natural. É um vírus altamente transmissível e letal. Mas a maneira como esta crise de saúde se desenvolveu e a maneira como se lhe respondeu… isso tem tudo a ver com o sistema em que vivemos, e está marcado por ele. Esse sistema é o capitalismo-imperialismo.

A humanidade está a enfrentar uma crise global de saúde a uma escala sem paralelo desde a pandemia da gripe de 1918. Essa pandemia infetou um terço da população mundial e causou 50 milhões de mortes. A covid-19 (causada por um coronavírus) foi detetada pela primeira vez na China em dezembro de 2019 — e rapidamente se converteu numa crise global de saúde. No mundo inteiro, há agora [20 de julho] quase 14 milhões de casos confirmados e mais de 590 mil mortes (conhecidas).

Ainda não há nenhuma vacina para o coronavírus, nem procedimentos terapêuticos eficazes. Não é claro durante quanto tempo (agora calculado em anos) irá a humanidade enfrentar o coronavírus e as consequências dele. Esta doença está a ocorrer num sistema económico global — o capitalismo-imperialismo — e a humanidade está fortemente subordinada a esse sistema.

Este sistema é a maior barreira a que se lide com esta crise de uma maneira que sirva os interesses dos milhares de milhões de habitantes deste planeta. Porquê?

O capitalismo está organizado em torno da propriedade privada de meios de produção altamente desenvolvidos e socializados: as fábricas e os equipamentos, as matérias-primas e as tecnologias, os transportes e as comunicações, juntamente com vastas redes de distribuição. Este sistema tem uma dinâmica interna. A concorrência impele os capitalistas a gerarem lucros e mais lucros com base na exploração dos trabalhadores que não possuem nem controlam esses meios de produção.

A concorrência impele os capitais individuais a reduzirem os custos e a expandirem a produção para obterem quota de mercado e derrotarem os seus rivais… ou serem eles próprios derrotados. Nas telecomunicações, a Nokia, a Apple, a Samsung e a Huawei batalham entre si pelos mercados, pelas patentes e pela eficiência dos custos de produção (o que inclui trabalho infantil nas minas do Congo).

Este é um sistema em que o lucro controla, configura e distorce as prioridades e as decisões de investimento em todos os setores da economia.

Considere-se estes dois factos em relação à prevenção e tratamento de doenças no capitalismo:

  • No final da década de 1990, 39 das maiores empresas farmacêuticas do mundo processaram o governo sul-africano para fazerem com que os medicamentos genéricos mais acessíveis contra o VIH se mantivessem fora do alcance das pessoas atingidas pela doença. Foi preciso passarem muitos anos para que os tratamentos antivirais contra o HIV finalmente chegassem a África. Isso é homicídio!
  • Já em 2016, as grandes empresas farmacêuticas “optaram por ficar de fora” do desenvolvimento de uma vacina contra o parasita da malária que estava a matar centenas de milhares de crianças por ano nos países pobres, especialmente em África. Porquê? Bem, como foi abertamente afirmado nas páginas de negócios do jornal New York Times, “não é possível ganhar dinheiro com uma vacina para crianças pobres que de maneira nenhuma poderiam pagar pela inoculação”.*

Não há nenhuma planificação económica-ecológica consciente e abrangente

Neste sistema, os recursos e as capacidades da sociedade humana não são utilizados para beneficiar e melhorar a humanidade mundial. NÃO há nenhuma planificação económica-ecológica consciente e abrangente. Por um lado, a moderna economia imperialista-capitalista é altamente interdependente: a General Motors precisa de alumínio e de máquinas-ferramenta, de trabalhadores treinados e de que as pessoas comprem os seus automóveis. Mas numa economia de propriedade e controlo privados, de capitais em concorrência entre si, com cada um deles visando maximizar os lucros, estes requisitos são satisfeitos através da compra e venda no mercado. Só “a posteriori” se irá descobrir se os investimentos são “rentáveis”.

Enormes blocos de capital dominam a economia norte-americana no seu conjunto — e interagem entre si fundamentalmente como rivais. O estado imperialista norte-americano salvaguarda os interesses estratégicos da classe dominante capitalista (mesmo que alguns setores da classe dominante lutem sobre a maneira de servir esses interesses ou possam estar em mudança).

Portanto, por todas estas razões e muitas mais, NÃO é possível, neste sistema, satisfazer as grandes necessidades da humanidade nem organizar racionalmente a produção e atribuir recursos para satisfazer as necessidades sociais fundamentais, como a alimentação, o alojamento e a saúde, e proporcionar uma fértil vida intelectual e cultural. Não é isso que acontece… nem pode acontecer. Mas isso é possível! Como? Fazendo uma revolução para derrubar este sistema e substituí-lo pelo socialismo em transição para o comunismo, tal como está estabelecido na Constituição para a Nova República Socialista na América do Norte, da autoria de Bob Avakian (disponível em inglês e em castelhano).

Numa economia de rápida mudança nos mercados, nas oportunidades de lucro e na concorrência de alto risco, os horizontes dos capitais individuais são de curto prazo. A Tesla, a Dell, a Microsoft e outras empresas não estão preocupadas com os impactos ambientais de longo prazo devidos à extração mineira do cobalto para as baterias de lítio (já para não mencionar os custos humanos). Uma vez mais, ao nível de toda a sociedade (e do mundo), não há nenhuma planificação prévia, para haver uma antecipação e preparação para os desastres naturais e de saúde, no maior grau possível tendo em conta os conhecimentos e a capacidade de previsão existentes, uma preparação para as emergências climáticas (como os furacões e o aumento do nível do mar a longo prazo); para as doenças e as emergências sanitárias; e para outros desafios de curto e longo prazo.

Assim, antes da pandemia da covid-19, havia uma criminosa falta de preparação: pouco financiamento e pouca pesquisa e desenvolvimento de tratamentos para os tipos de doenças transmitidas dos animais para os humanos que mais recentemente e com cada vez mais frequência têm aparecido em todo o mundo… a abismal ausência de produção e armazenamento de equipamentos e produtos médicos de proteção… e agora a resposta dispersa e fragmentada a esta crise… tudo isto exacerbado por um lunático fascista e anticiência ao comando do estado imperialista norte-americano.

Uma pandemia que ocorre num sistema dividido em países opressores e oprimidos

Este é um sistema em que um punhado de poderosos países capitalistas como os Estados Unidos, a China, o Japão, a Rússia e a Alemanha domina e pilha os países pobres do “sul global”. À medida que se propagava e agravava a emergência sanitária do coronavírus, estas potências imperialistas competiam entre si por abastecimentos científicos e médicos e “licitavam” (vendo quem pagava o preço mais elevado) máscaras, batas, luvas e ventiladores. Em algumas cidades do Brasil, os abastecimentos de reagentes químicos para testar o vírus foram efetivamente sequestrados para os Estados Unidos.

Logo no início da crise, Trump invocou a Lei de Produção para a Defesa para restringir as exportações norte-americanas de produtos médicos chave, deixando muitos países pobres a lutar por equipamentos para conter o vírus e proteger os trabalhadores da saúde. A 1 de julho, o Departamento norte-americano de Saúde e Serviços Humanos anunciou ter comprado praticamente toda a produção global de três meses de remdesivir, um medicamento que reduz o tempo de recuperação das pessoas infetadas com o vírus.

Tem sido frequentemente mencionado nos grandes meios de comunicação que os sistemas e as infraestruturas de saúde dos países pobres de África, Ásia e América Latina (o chamado “sul global”) são “frágeis” nestes tempos de pandemia. Isto é um eufemismo cruel e egoísta para descrever os sistemas de saúde truncados e dizimados pelo imperialismo.

Em 2019, 64 países, quase metade deles em África, gastaram mais a pagar a sua dívida externa às instituições imperialistas de crédito que na saúde! Ao longo dos anos, estes países tiveram que cortar os orçamentos para a saúde, para a formação de profissionais de saúde e para a pesquisa em saúde como condição para receberem mais empréstimos dos países imperialistas. Estes empréstimos reforçam e servem toda uma estrutura de dominação imperialista — uma produção orientada para a exportação e a extração de matérias-primas e outras formas como estes países são subordinados para servirem as necessidades do imperialismo. E com as economias das nações pobres agora a atravessar profundos declínios económicos, e num momento em que são necessários milhares de milhões de dólares adicionais para lidar com esta crise de saúde, o pagamento da dívida irá tornar-se um peso ainda maior sobre esses países (ver Raymond Lotta, “De aperto com grampos a aperto de morte”).

O imperialismo “distorce” o mundo

Recordemo-nos de que uma pandemia é um fenómeno mundial (“pan” significa “em todo o lado”). E neste caso estamos numa pandemia… e o desenvolvimento de uma vacina que possa prevenir eficazmente a doença é em si mesmo objeto de uma intensa rivalidade entre os gigantes farmacêuticos e os estados nacionais imperialistas que os apoiam, especialmente os Estados Unidos e a China. Na lógica perversa do capital, “chegar primeiro” irá gerar enormes lucros para as empresas que o fizerem (“protegidas” pelos chamados direitos de propriedade intelectual). E “chegar primeiro” irá significar a obtenção de uma enorme vantagem e controlo para as potências imperialistas que o fizerem.

Trump batizou o esforço norte-americano de desenvolvimento de uma vacina como “Operação Warp Speed” [uma velocidade que se deforma com o tempo]. Na realidade, os ditames do lucro e as manobras imperialistas “distorcem” o desenvolvimento, a aplicação e a utilização da tecnologia e do conhecimento científico. Uma vacina para a “América em Primeiro Lugar”? Que se lixe isso… o mundo inteiro está em primeiro lugar!

Regressando ao ponto fundamental de compreensão: esta pandemia é um fenómeno biológico natural, mas a maneira como evoluiu e a maneira como se está a lidar com ela estão inextricável e horrivelmente associadas ao sistema em que vivemos: o capitalismo-imperialismo.

2) O mundo está a atravessar simultaneamente a maior pandemia e a maior contração económica em 100 anos. O detonador imediato da crise económica foi o coronavírus: as interrupções na produção e as roturas no comércio mundial. Mas o caráter e as dinâmicas subjacentes da atual crise económica que está ter um enorme impacto na vida e no bem-estar de milhares de milhões de pessoas em todo o planeta… são os do sistema do capitalismo-imperialismo baseado no lucro.

A economia capitalista mundial já estava a enfrentar um fraco crescimento económico e uma acumulação massiva e desestabilizadora de dívida antes da pandemia. A pandemia e as medidas tomadas pelas grandes potências imperialistas para conter esta crise, entre as quais os resgates de empresas e as injeções de fundos no sistema financeiro, poderão vir a desestabilizar ainda mais as coisas.

A rivalidade económica e geopolítica entre o imperialismo norte-americano e o imperialismo chinês já se estava a intensificar antes da pandemia, perturbando os fluxos globais de comércio e investimento. Esta rivalidade tem-se agudizado ao longo da pandemia.

As redes imperialistas de abastecimento… os “choques” de abastecimento… e o início da crise

Comecemos pelas redes imperialistas de abastecimento, porque esta crise começou com o chamado “choque de abastecimento”. A economia capitalista mundial tornou-se mais globalizada durante as últimas décadas.

A maioria dos produtos, sejam carros, dispositivos eletrónicos, motores de aeronaves ou produtos farmacêuticos, são produzidos através de uma vasta divisão global do trabalho em que diferentes unidades de produção fazem parte de um complexo processo de produção. As matérias-primas que são integradas num computador são extraídas em África; a montagem pode ocorrer na China. A Target, a H&M e a Walmart subcontratam a empresas no Bangladesh a produção de camisetas, vestidos e calças de ganga — em infernais fábricas de exploração extrema que empregam sobretudo mulheres.

O produto físico move-se através de diferentes trajetos e atravessa múltiplas fronteiras em redes globais de abastecimento. E em cada fase da produção e transporte, os lucros são desviados e concentrados em direção ao exterior e para cima, em direção aos grandes bancos e empresas transnacionais com sede nos países imperialistas, que organizam e controlam estas redes de abastecimento, e em direção aos governos imperialistas. Eles pressionam os múltiplos fornecedores para que entrem em concorrência entre si para conseguirem manter os contratos através da redução dos custos — através de uma exploração ainda mais selvagem da sua força de trabalho.

Em Março, o coronavírus estava a espalhar-se pelas redes globais de abastecimento. Estava a infetar os trabalhadores e a causar interrupções da produção. Os primeiros sinais foram o encerramento de fábricas na China e noutros países da Ásia. Começaram a diminuir os inventários dos componentes que entram na produção em diferentes partes do mundo através destas redes de abastecimento. A China encerrou grande parte da sua economia. À medida que o vírus se propagava à Europa e aos Estados Unidos, foram tomadas medidas para conter a propagação: restrições às viagens, encerramento de lojas, retenções em casa e quarentenas. Foram canceladas encomendas aos fornecedores nos países pobres, o que resultou em despedimentos em massa.

Isto conduziu muito rapidamente a um “choque” na economia capitalista mundial: as empresas cortaram nos investimentos à medida que enfrentavam uma diminuição da procura; interrupções no abastecimento; e uma incerteza nas perspetivas dos lucros futuros. Seguiram-se os despedimentos em massa; os bancos deixaram de fazer empréstimos; sectores-chave dos países imperialistas, como a indústria de aviação, enfrentaram uma evaporação total dos ganhos; as bancarrotas estavam iminentes; e muitas pequenas empresas encerraram permanentemente. Nos países oprimidos, a atividade económica parou repentinamente, os portos encerraram, as fábricas fecharam, os voos foram cancelados e os centros turísticos esvaziaram-se. Como foi mencionado anteriormente, os governos dos países dependentes são responsáveis por milhares de milhões de dólares em pagamentos de dívidas.

Alguns números que medem a crise

Um braço financeiro do Fundo Monetário Internacional (FMI) estima que nos primeiros três meses deste ano muitas das economias do mundo possam ter encolhido entre 25% e 40% (a uma taxa anual). Segundo o World Economic Outlook [Perspetivas da Economia Mundial] do FMI, de junho de 2020, prevê-se que o crescimento dos países capitalistas desenvolvidos caia 8% em 2020. Na Índia, prevê-se que a economia contraia 4,5%; o México e o Brasil deverão contrair 10,5% e 9,1%, respetivamente. Prevê-se que o comércio global diminua 11,9% em 2020.

Porque é que é importante examinar estes dados, e porque é que nos devemos importar? Porque eles revelam a grave queda da atividade económica. E é exatamente por isso, com as massas populares a perderem as suas fontes de rendimentos e a terem de lutar pela sua sobrevivência — submetidas a condições sociais e económicas ainda mais duras — que eles pressagiam um sofrimento e um empobrecimento ainda piores.

  • A Organização Internacional do Trabalho (OIT) reportou no final de junho que a diminuição da atividade económica é suscetível de ter resultado numa queda de 14% nas horas globais de trabalho entre abril e junho de 2020, o equivalente a 400 milhões de empregos a tempo inteiro. Nos Estados Unidos, os empregadores puseram em layoff ou despediram entre 30 e 40 milhões de trabalhadores. O impacto no mercado de trabalho tem sido especialmente agudo para os trabalhadores com poucas qualificações que não têm a opção de trabalhar a partir de casa.
  • Dos cerca de 2 mil milhões de pessoas chamadas “trabalhadores informais” — os trabalhadores, principalmente nos países oprimidos, que não têm horários de trabalho regulares e salários fixos, e com poucas ou mesmo nenhumas proteções e benefícios sociais —, cerca de 80% (1,6 mil milhões) estão a sofrer enormes danos à sua capacidade de ganhar a vida.
  • Este mesmo relatório da OIT destaca o efeito desproporcionado da pandemia nas mulheres. Globalmente, 40% de todas as mulheres empregadas trabalham nos quatro setores mais atingidos pelo coronavírus, em comparação com 36,6% dos homens. Essas mulheres também estão altamente concentradas nos setores do trabalho doméstico, da saúde e dos cuidados sociais, o que as colocou em maior risco de infeção e transmissão do vírus e de perda de rendimentos. Ao mesmo tempo, a distribuição do trabalho de cuidar dos filhos ficou ainda mais desigual durante a pandemia — agravada pelo encerramento das escolas e dos serviços sociais.
  • Antes da pandemia, 820 milhões de pessoas já estavam numa situação de “insegurança alimentar crónica”. Mas agora, com um severo impacto nos rendimentos e na capacidade de migrarem, este número irá aumentar enormemente. As Nações Unidas avisaram que um número estimado de 265 milhões de pessoas poderia enfrentar uma aguda insegurança alimentar (fome extrema e morte à fome) até ao final de 2020 — em comparação com os 135 milhões antes da crise.

O funcionamento “normal” deste sistema é intolerável para a humanidade mundial. Esta contração irá intensificar-se e multiplicar os horrores.

A rentabilidade, o estímulo e o parasitismo nos países imperialistas

Com o colapso da produção e dos investimentos em março, o mercado bolsista desabou e os mercados financeiros congelaram. O Banco da Reserva Federal (o banco central dos Estados Unidos que influencia os fluxos monetários e as políticas financeiras, como as taxas de juros) interveio com uma massiva injeção de fundos. Esta intervenção teve uma dimensão de 3 triliões de dólares para evitar um colapso financeiro maior do que o que ocorreu em 2008-9. Isto efetivamente reduziu as taxas de juro a zero para estimular os empréstimos empresariais. A Reserva Federal comprou todos os tipos de dívidas — e o resultado foi a canalização de triliões de dólares para os investidores financeiros.

Nos 4 meses decorridos desde então, os mercados bolsistas atingiram novos picos. Houve uma espécie de dissociação entre os mercados bolsistas e a economia subjacente, a base globalizada de produção sobre a qual, em última instância, eles assentam e da qual, em última instância, não se podem libertar (um tema a discutir numa outra ocasião). Mas há esta desconexão relativa: a vasta acumulação de riqueza financeira nos mercados bolsistas e de títulos por parte de uma camada de investidores — baseada em todo o tipo de especulações —, ao mesmo tempo que a economia subjacente está em crise e milhares de milhões de pessoas sofrem em todo o planeta.

É um reflexo, e uma maior intensificação, da situação anterior à pandemia. Como salientaram vários comentadores, a economia norte-americana estava há 10 anos, desde a Grande Recessão de 2008-09, numa bolha alimentada pelo crédito. Os Estados Unidos e outras economias capitalistas, mas os Estados Unidos em particular, têm tido um baixo crescimento do investimento na produção e um crescimento da dívida. A rentabilidade, o retorno do investimento, tem encolhido nos setores produtivos da economia norte-americana, e isto tem limitado o investimento.

A economia mundial estava a crescer mais lentamente nos últimos anos. Em 2019, o crescimento global foi o mais baixo desde a recessão global de 2008-9. E, neste clima de baixo crescimento, aumentou a concorrência pelos mercados, por vantagens tecnológicas e pelo controlo das redes de abastecimento. A dívida das empresas já estava em níveis elevados. Agora, após quatro meses de crise pandémica e económica, as declarações de falência de empresas estão no seu ponto mais elevado desde 2009.

Isto são condições financeiras e económicas voláteis que poderão levar a um “choque financeiro” e a uma crise que poderá minar a estabilidade do dólar, a principal divisa da economia mundial.

A escalada da rivalidade entre os Estados Unidos e a China

Estas circunstâncias também fazem parte do cenário da escalada da crescente rivalidade imperial entre os Estados Unidos e a China, económica e militarmente. A economia da China recuperou ligeiramente do seu ponto mais baixo de produção quando foi atingida pela pandemia. Prevê-se que a China cresça 1% este ano. Dada a esperada diminuição do crescimento dos Estados Unidos, isto significa que o fosso entre as economias dos Estados Unidos e da China irá encolher a favor da China, ainda que os Estados Unidos se mantenham a potência económica dominante no mundo. As tensões entre os Estados Unidos e a China intensificaram-se durante a pandemia: quanto ao comércio e ao acesso aos mercados, em torno das novas tecnologias de telecomunicações e sobre a maneira de a Organização Mundial de Saúde contribuir para a investigação e a compreensão para resolver a crise. Tanto a China como os Estados Unidos têm reforçado as suas capacidades militares. O perigo de um conflito entre estas duas potências está a acelerar. Irei escrever mais sobre isto e as implicações disto para os povos do mundo.

Num mundo altamente interconectado… num mundo em que uma pandemia está a causar sofrimentos indescritíveis… num mundo em que a cooperação internacional não poderia ser mais importante… imperam os ditames do imperialismo. Isto é cruel, é irracional, é desnecessário.


*.  “Lifting the Patent Barrier to New Drugs and Energy Sources” [“Levantar a barreira às patentes para novos medicamentos e fontes de energia”], New York Times, 12 de abril de 2016. [Regressar]

†.  A República Popular da China autodenomina-se socialista. Mas é uma sociedade inteiramente capitalista — organizada em torno do lucro e baseada na exploração. A China exporta capital para todo o mundo e tem forjado uma rede global de exploração e influência que desafia e contende com os Estados Unidos e outras potências imperialistas. Em 1949, chegou ao poder uma verdadeira revolução liderada pelo revolucionário comunista Mao Zedong. Foi então criada uma sociedade socialista e centenas de milhões de pessoas assumiram a causa da construção de uma sociedade livre da exploração e da opressão. Mas depois emergiu uma nova classe capitalista dentro das estruturas do Partido Comunista e do estado socialista da China. Mao levou a cabo a Revolução Cultural de 1966-76 para aprofundar a revolução e impedir a restauração capitalista. Mas, em 1976, essa nova classe capitalista tomou o poder. A China evoluiu para ser hoje uma potência imperialista. [Regressar]

‡.  Nesta tradução usou-se a notação brasileira em que um trilião equivale a mil biliões, ou seja, um milhão de milhões. No português de Portugal, deve substituir-se triliões por biliões. [NOTA DO TRADUTOR] [Regressar]